Tudo, menos um livro novo - Microcontos do Ninoverso #5

Antes eu, do que nunca

“O que é não binariedade?”

Cris digitou as quatro palavras para esclarecer sua dúvida, após ler o termo nas redes sociais.

Nas semanas anteriores, seu corpo estava agitado. Mal dormia, mal conseguia comer, não tinha concentração suficiente para participar das conversas. De repente, sentia que viver em seu próprio corpo era errado, que existir sem se preocupar com a maneira como se portava — feminina ou masculina — não era certo.

Por diversas vezes naquela semana, se pegou coçando o braço como se quisesse remover a própria pele, se livrar da identidade que vinha nutrindo e construindo desde criança. Não conseguia se reconhecer de forma alguma. Olhar para o espelho aumentava sua ansiedade, dobrando o número de vozes na cabeça.

Primeiro, ouviu Olavo comentar com os colegas, em tom de indireta, que esperava que meninas se vestissem melhor enquanto passava pelo corredor. Ele completou com: “Afinal, meninas têm bom senso para moda.” Cris sabia que era sobre as roupas que vestia naquele dia, como se ele soubesse o que é ter bom senso. E, por mais que não quisesse internalizar aquilo, não teve saída.

Em sequência, no final do dia, ouviu da professora de biologia que era um absurdo ter estudantes com cabelo tão comprido no laboratório. “Decidam de uma vez: se querem ter esse estilo de vida, tragam algo para prender o cabelo como todas as meninas ou cortem o cabelo como todos os meninos”, comentou, em um tom tão maldoso que Cris não conseguiu fazer nada além de encolher-se. Douglas deu dois tapinhas no ombro coberto pelo jaleco, como para dizer que estava tudo bem. Nicole não estava ali naquele dia; se estivesse, teria rebatido o comentário, com certeza.

Entretanto, nenhum dos dois sabia o que se passava na mente de Cris. Naquele momento, talvez nem Cris soubesse. Não era um menino. Também não era uma menina, embora se sentisse um pouco desse lado do espectro. Mas, se não era nenhum dos dois, o que mais poderia ser?

“Como se chama alguém que não é nem homem nem mulher?”, digitou no navegador em um domingo de outubro. Deveria estar estudando para uma prova importante, mas sentia a mente inquieta.

Não binário era o termo que aparecia em todos os resultados, fosse no título ou na descrição.

Cris abriu todos os links, leu todas as matérias e quis saber mais. “O que é não binariedade?”, “Quem pode ser não binário?”, “Como saber se sou uma pessoa não binária?” Tinha tantas questões que leu até sites em inglês. Descobriu livros sobre o tema, séries, filmes e tantos outros formatos. Por que ninguém dizia na escola que era possível ser trans? Por que não ensinavam sobre estar além da binariedade?

Queria tanto ter tido curiosidade antes. Mas será que isso faria bem? Não sabia. Mas entendia que poderia ter evitado a dor, o desespero, o auto-ódio, a desesperança. Estava cada vez mais distante das pessoas e sabia que a tendência seria piorar. Porque não queria mais estar entre outros. Queria se afogar nos novos caminhos, descobrir tudo, saber mais sobre si e sair diferente.

E mesmo que precisasse se isolar de quem amava, para explorar a verdade sobre si, queria correr o risco. Seria melhor do que lidar com a rejeição diante da descoberta.

Ir mal na prova — o que não aconteceria — seria compensado, porque agora existiam duas palavras que definiam o que acreditava ser. E isso bastava para começar a jornada e entender que ser uma pessoa não binária era uma possibilidade real, mesmo em Vila Férrea.

Cris desligou o computador e foi dormir com a certeza de que tudo estava prestes a mudar, para melhor.

Imagine que incrível seria descobrir a possibilidade de sair das caixinhas de menino e da menina ainda cedo. Mas essa não é a realidade para a grande maioria. Se descobrir uma pessoa trans tardiamente é uma exepriência intensa para pessoas que vão se podando ao longo da infãncia, adolescência e início da vida da adulta para se encaixar em ideias binárias de gênero.

Quando eu estava escrevendo Morte Cereal, quis que Cris já tivesse passado por tudo isso para dar espaço para a personagem crescer de outras maneiras na história que não envovlessem um óido por sua própria existência, simplesmente porque o restante das pessoas em Vila Férrea não são progressistas. E foi muito importante que acontecesse assim.

Mas é claro que não pude deixar de pensar no que a levou a se isolar do grupo, como exatamente isso aconteceu e porque foi tão importante se esconder para se encontrar sozinha.

Essa é uma história curtinha que mostra apenas o início da jornada de Cris se entendo como pessoa não binária ainda na adolescência. Mas poderia ser a narrativa de muitas pessoas que só depois de terem acesso à internet e novos espaços culturais puderem começar a se entender.

Por isso, é importante falarmos sobre a não binariedade e a transgeneridade em todos os espaços. Nunca se sabe quando estaremos ajudando alguém a entender sua verdade no mundo.

Esepero que gostem e LEIAM MORTE CEREAL!!!!!

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