Tudo, menos um livro novo - Microcontos do Ninoverso #4

Mas dessa vez é um conto.

O hino dos corações partidos

E todo dia é como uma batalha

Mas todas as noites conosco são como um sonho

New Romatincs, Taylor Swift

Fevereiro de 2015

Morar com pessoas criadas de maneira diferente implica muitas coisas. Pois como Winston Bishop e Nick Miller explicam em New Girl, um apartamento compartilhado possui um ecossistema e ele deve ser respeitado.

Uso os pés para retirar os sapatos assim que fecho a porta. Deixo-os junto aos outros pares na sapateira que fica quase colada à porta. Essa regra deve ser seguida à risca para evitar possíveis danos à estrutura social dessa casa.

A maioria das regras estabelecidas não foram criadas por mim. Cheguei aqui por último e na casa dos meus pais só precisávamos seguir duas diretrizes: todos são responsáveis pela limpeza e o espaço pessoal dos demais deve ser respeitado.

Essa, na verdade, é a única regra exclusivamente estabelecida por mim desde que cheguei aqui. 

Ao que tudo indica, estou sozinha. Meu turno no estágio terminou mais cedo porque disse que precisava estudar para uma prova que terei na segunda de manhã. Não é mentira, mas usei essa carta apenas porque me sinto exausta com toda o estresse de estar no ambiente de trabalho

Checo as notificações do celular apenas para ter certeza de que não vou precisar sair repentinamente na falta de algum produto que posso ter deixado passar quando fiz as compras na noite anterior. Nem Bela e nem Elizabete enviaram recado no grupo do apartamento, o que é um sinal positivo. Retiro minha jaqueta e a coloco no encosto da cadeira que fica no meu quarto. Respondo ao meme engraçadinho que meu pai enviou pelo Facebook antes que esqueça e ele me ligue perguntando se estou viva.

Em dias normais, me sentaria em frente ao computador e escreveria as minhas mil palavras diárias. Mas a exaustão consome meu corpo e não há um traço de inspiração para dar ainda mais problemas para as minhas personagens. Fica para amanhã.

Com todos os itens que podem causar estresse riscados da lista, me preparo e vou em direção ao banheiro para um banho capaz de revigorar cada músculo do meu corpo. É o que preciso para relaxar.

Depois do banho, quando estou fazendo plopping no cabelo, desbloqueio o celular e abro o feed do Instagram. É um ritual quase que religioso para muitos de nós. Ou pelo menos para mim. Durante a semana, gosto de me atualizar na vida alheia antes de dormir. 

Minha tia, por exemplo, fez uma bela torta de abacaxi e registrou o momento quase que perfeitamente, não fosse o filtro que colocou na imagem. Esse é o mal do dessa rede social, filtros. Me pergunto se um dia isso vai acabar ou se vai ficar pior.

E então, enquanto rolo a tela para baixo, lá está ela: Cintia. A minha ex-namorada continua bonita, é claro, seria estranho se ficasse feia aos meus olhos dentro de um período de dois meses. Ela está em toda a sua glória na foto, acompanhada de uma menina que eu nunca vi na vida. Será que são… Abaixo o feed mais um pouco e a legenda diz “a vida nos surpreende com amor quando menos esperamos”.

Pisco repetidamente com a informação. Abro as marcações, entro no perfil da tal garota e a stalkeio. Lá tem bem mais fotos com Cintia. Ótimo, ela seguiu em frente. Muito legal. Não me importo nem um pouco com isso. Não enrolei a camisa de algodão na cabeça com um semblante irritado. Não caminhei até a cozinha e surrupiei uma bandeja de samantas da Doces Manhãs. Não estou largada no sofá de cara feia enquanto assisto a um filme qualquer da Barbie exibido nos canais pagos que obtemos gratuitamente com um aparelho comprado no Brás. Talvez essa seja a minha sina.

Estou tão concentrada em estar irritada que quase não escuto a porta do apartamento abrir. Só percebo que está sendo fechada porque Bela e Eliza estão falando muito alto, tomadas por uma empolgação que pode me irritar a qualquer momento.

— E é por isso que eu não vou fazer trabalho com aquelas duas! — a voz doce e reclamona é de Bela. — Da última vez, a pesquisa ficou toda pra mim. Imagina que eu vou passar esse nervoso de novo?

— Já arranjou outro grupo? — Elizabete pergunta. 

— Claro, um grupo comprometido. Combinamos de acertar a montagem do trabalho já na segunda. Acho que todo mundo vai começar a pesquisa hoje e…

Encaro as duas. Curiosa. Elas me encaram de volta. Confusas.

— Boa noite? — quebro o silêncio. — Aconteceu alguma coisa, gente?

As duas se encaram. Existe algum tipo de conexão mental ali, pois já as vi fazerem esse mesmo gesto em diversas ocasiões e entrarem em sintonia em questão de segundos.

Conheci as duas em uma das filas da universidade. Não lembro o objetivo da fila porque só naquela semana precisei entrar em umas quatro ou cinco. Já as tinha visto de relance em uma das festas que fui com Cíntia. Foi quando algum amigo dela disse que a dupla estava procurando uma colega de quarto no terceiro semestre. Na época, não era algo que eu procurava. 

Só quando as reencontrei na fila, meses depois, quando decidi que precisava me mudar para mais perto por conta do estágio, que realmente nos tornamos amigas.

Bela Chikaraishi estuda Letras e Elizabete Aguiar faz Artes Cênicas. Eu estou cursando Ciências Contábeis. Claro que me chamam de nerd vez ou outra debaixo desse teto, mas ninguém aqui escapa muito disso. Bel é como uma enciclopédia literária e Eliza sabe mais coisas sobre teatro do que eu sei sobre cálculo. Apesar dessa diferença entre os cursos, o que nos une é que nós três amamos escrever.

Eu, fanfics, Bela, poesias, e Eliza, contos e romances.

— Por que você está aí largada, Aurora? — Bela cruza os braços, enruga a testa e cerra os olhos. — Você acha que suas leitoras vão perdoar se você atrasar mais um capítulo da sua história?

— Como é? — questiono, incrédula. A minha vontade é de rir, mas me contenho para não sair do mood deprê.

Estou falando com propriedade sobre isso! — Ela se aproxima. — Preciso saber o que vai acontecer com a Mulan e a Aurora pra já! Você deixou a gente com um gancho ferrado.

— Minha nossa, Bela. Você sabe o porquê. Vai ter que me perdoar — resmungo e me encolho no sofá.

Ela continua em pé com o olhar me fuzilando. Elizabete caminha até o meu lado e puxa meu corpo para um abraço. Nenhuma de nós diz nada e nossa outra amiga senta no braço do móvel e nos envolve com seus braços.

— Miga, isso ainda é sobre a Cintia? — Eliza quebra o silêncio.

— Ai… — As palavras ficam entaladas quando tento dizer que sim e então começo a chorar. Há um esforço da minha parte para fazer isso de maneira contida, mas não consigo. Não sei se deveria estar assim, sentindo uma onda de arrependimento por não ter lutado pelo nosso relacionamento. Mas aqui estou. Desabando outra vez.

Além do som do meu nariz fungando a cada lágrima que derrubo e dos soluços, o único ruído que nos acompanha é o dos carros que passam pela rua, mais movimentada hoje do que em dias comuns.

Quando o choro cessa, minhas amigas se afastam para que eu consiga recuperar o ritmo da minha respiração. Talvez estejam cansadas de tudo isso.

Bela encontra o celular no bolso e desvia a sua atenção de mim. Os pais dela estão sempre mandando mensagens, assim como o meu pai. Eles têm uma relação próxima e carinhosa. Sei disso porque o espírito fofoqueiro desse apartamento já me fez traduzir algumas expressões em japonês que minha amiga usa vez ou outra ao falar no telefone. Até me desculparia por bisbilhotar, mas sei que Bel não se importa e nem tem vergonha.

Enquanto isso, Elizabete segue as lágrimas das minas bochechas. Ela é muito mais do contato físico do que das palavras. Acredito que seja porque foi a maneira que encontrou de não ser distante daqueles que ama. Mas não me atrevo a  perguntar e nem Bela, que é bem mais próxima, o faz.

— Sabe do que você precisa? — Eliza diz, por fim. — Para voltar a escrever, quis dizer.

— O quê? — Ergo a cabeça para entender se o seu tom de voz foi de felicidade ou aquele que toma conta quando tem uma ideia.

— Sair de casa! Se divertir, conhecer gente nova, conhecer a cidade num horário que você geralmente está enfiada no quarto.

— Ah, mas eu não gosto de festas durante a semana, Bete — suspiro.

— É sexta-feira, fanfiqueira! — anuncia em um tom alegre. — O que suas protagonistas estariam fazendo agora? — ela questiona. Quando faço menção a abrir a boca, levanta um dedo para que eu não fale. — Nem precisa responder, eu também leio as suas histórias. Elas estariam em um bar!.

— E onde acharemos uma festa para ir nesse horário? — Tenho esperanças de que não haja resposta para isso e que fiquemos em casa. Gostaria de definhar sem o otimismo delas.

— Eis que arranjei três ingressos para a festa da Taylor! — Bel celebra ao pular do braço do sofá e exibir a tela do celular em frente aos nossos rostos.

— Quem é essa?

— A Taylor Swift, miga, a cantora! — Ela dá uma risadinha abafada pela minha reação.

— O que é uma festa da Taylor então? Ela vai estar lá presencialmente?

— Não, mas é uma festa que só vai tocar as músicas dela. Em especial as do novo álbum! — Elizabete explicou.

— Nossa, a pessoa que inventou essa festa com certeza em 2022. Ideia de gênio! — Bela comenta. Ela e Eliza compartilham esse amor pela cantora com todo mundo. Eu prefiro escutá-la apenas no meu quarto, onde ninguém sabe o que estou fazendo.

Mas a ideia de estar cercada de pessoas 

— O que nos diz, Bela Adormecida — Eliza pergunta. Esse apelido é horroroso, mas não sem fundamento. Respiro fundo.

Sei que poderia apenas recusar a ideia e me entregar a vontade de ficar em casa. Elas entenderiam. Porém, há alguma coisa me dizendo que se eu recusar esse convite, irei me arrepender de passar mais um dia dormindo e acordando porque o sono não está lá de verdade.

— Tudo bem — aceito. — Vamos sair da floresta!

— Que trocadilho péssimo, amiga!

Nós três rimos. Sinto que é a primeira vez em semanas em que dei uma risada genuína. Deve ser um sinal de que a noite será incrível. Não tem como ser de outra forma.

Enquanto as duas revezam o tempo no banheiro, entro no quarto em busca de alguma roupa que encaixe na vibe da festa. Está frio em São Paulo pela primeira vez em semanas. Os últimos dias foram tão quentes que até ficar triste estava sendo trabalhoso. Opto pelo meu suéter listrado. Ele é lindo, em tons de azul e roxo. Não irá combinar com as minhas unhas pintadas nos tons da bandeira lésbica, mas é tão lindo e  confortável que não resisto.

Com o Bilhete Único na carteira e um sonho, nos reunimos na sala. Estamos gatas demais para não tirarmos uma foto que vai estar em todas as nossas redes sociais amanhã — exceto pelo Face.

— Agora uma polaroid! — Elizabete ganhou a câmera de fotos instantâneas de aniversário e, desde então, não há um dia que ela considere importante que não esteja recheado dessas fotos. A parede do quarto dela está começando a ficar sem espaço.

Enquanto descemos o elevador, Bela ajeita um par de óculos escuros no rosto.

— Pra que isso, Bel? — pergunto, confusa.

— É a estética da Taylor, Auró. Pra ficar legal nas fotos.

Assinto, embora não entenda o apelo.

Ao sairmos da caixa de metal, cumprimentamos o porteiro com sorrisos e desejos de boa noite. Ele encara o relógio confuso enquanto libera o portão. Pois é, seu Vicente, também estou encucada com essa saída, mas vamos seguir o baile!

— Para onde, migas?

— Metrô! — elas dizem em uníssono. Sete e meia é um horário que ainda traz vestígios de pessoas voltando do trabalho. A rua em que moramos vai de encontro com uma avenida movimentada da cidade, então cruzamos com um fluxo e um contra fluxo moderado de pessoas que estão chegando em casa ou caminhando até o ponto de ônibus mais próximo.

Sempre que caminho por aqui, fico imaginando quais são as histórias dessas pessoas. Quais serão seus sonhos, suas histórias, seus objetivos? Será que eles também sofrem por relacionamentos acabados ou levam numa boa? Nem sei porque essas questões me interessam, acho que é só uma maneira de pensar em mim por outras lentes. De explorar possibilidades podendo ignorar o meu contexto.

A estação não é tão perto assim do apartamento, por isso, caminhamos pelas ruas iluminadas pelo que sempre chuto serem sete minutos. Qualquer dia irei ligar o cronômetro e tirar a prova exata do tempo desse trajeto que faço quase diariamente. É um tédio, mas por algum motivo, hoje, o que sempre encaro como poluição visual, está muito bonito. Talvez o meu humor esteja mudando.

Descemos a escada rolante até as catracas e, depois de passarmos por elas com nossos bilhetes, chegamos à plataforma dos trens. Caminhamos um pouco mais para não ficarmos de frente aos vagões principais, de onde descerão mais pessoas.

— Segura o óculos assim… — Bel instrui quando me viro para ela. — E dá um sorrisinho para a foto.

Eliza não espera um segundo sequer para apertar o clique e a polaroid logo está em sua mão.

— Nossa, odeio esperar a imagem se formar — comenta. 

A felicidade me preenche outra vez. É como se ao sair do prédio em que moro, toda a minha angústia e negatividade acumuladas tivessem ficado para trás.

— Onde vai ser o esquenta? — Bel pergunta enquanto responde algumas mensagens.

— Nossa, não faço ideia, mas sei como conseguir bebida de graça hoje — Elizabete revela e pega o aparelho telefone do bolso.

Acho chato quando as pessoas estão em grupo, mas o foco está puramente nas telas. Não é que eu não seja viciada como toda a minha geração, mas é que a ansiedade fica mais controlada quando o cérebro reconhece que tá todo mundo na mesma. Luto para não pegar o meu celular na bolsa.

Para a minha felicidade, o som do metrô se aproximando ressoa em algum lugar do túnel e a luz de seus faróis aparece em seguida. Ao contrário do que a Taylor canta em New Romantics, aqui os trens vêm sim.

— Olha, para conseguir a bebida vamos ter que fazer algo meio chato antes — Bete fala, por fim.

— O quê? — pergunto quando o trem para na nossa frente.

Mas quando minha amiga responde, meu foco é desviado por uma gritaria bizarra entre dois passageiros e não consigo entendê-la em meio a falta de atenção e a gritaria. Tudo o que capto são as palavras:

— Tudo bem por você?

Confirmo com um acenar da cabeça, embora não saiba se está tudo bem.

Uma observação válida sobre essa linha é que às sextas-feiras, no período noturno, todos os universitários descobrem a existência dela. Porque sempre há uma festa universitária em algum lugar.

Já fui mais festeira, então falo por experiência própria. Infelizmente, ser uma pessoa que estuda e trabalha é um feito capaz de sugar muito da vitalidade de uma pessoa jovem, então fui perdendo a disposição de sair com a mesma frequência, ainda mais depois que eu e a Cíntia deixamos de ser um casal.

Bela consegue sentar e eu e Eliza seguramos a barra de ferro para manter o equilíbrio.

Narro parte do meu dia para minhas amigas. A monotonia e o cansaço que me consumiram parecem ainda mais chatas quando descritas por mim. Quando falo assim, parece até que sou intencional, mas a realidade é que não levo jeito para tornar minhas palavras interessantes pela oralidade. Por vezes, me acho meio sem graça. Em pequenos lapsos de insegurança. Sei que, no fundo, não sou.

Elas escutam atentamente e fazem suas pontuações. Ambas concordam que preciso de férias ou um estágio melhor, que realmente me desafie. Sei que estão usando minhas próprias palavras de uma conversa que tivemos há algumas semanas. Espertinhas.

Elas me contam sobre os altos e baixos da rotina delas também. É engraçado, porque as aventuras delas são um pouco mais absurdas, já que trabalham mais diretamente com outras pessoas. Sempre me divirto e rio, mesmo quando elas fazem as situações parecerem super sérias.

Talvez o que tenha mudado meu humor foi o fato de estar saindo com as duas.

Temos semelhanças em muitos aspectos das nossas vidas, como o sabor favorito de sorvete, a organização na cozinha e outras pequenas manias e detalhes que nos conectam muito mais do que um hobby ou uma banda poderiam. Mesmo quando somos diferentes ou nossas opiniões divergem, podemos contar uma com a outra, porque nos encaixamos da forma que achamos mais confortável. Nossa amizade é boa assim. Somos um lar uma para a outra, acima de tudo.

Quando chegamos na nossa parada, não me surpreendo com mais da metade das pessoas no vagão descerem conosco. Estamos na estação da Consolação, a mais próxima da rua Augusta, uma via extensa cheio de baladas e bares, majoritariamente frequentada por pessoas LGBTs.

— A festa é por aqui mesmo? — pergunto. Elas não me falaram aonde exatamente esse evento da Taylor vai acontecer, então continuo meio perdida.

— Não, é no sentido da Rebouças! — Eliza revela.

— Porra, migas! Cês vão me fazer caminhar até aquela avenida depois de descer a Augusta? Não sei se vocês me amam ou odeiam.

— Relaxa, a gente racha um táxi — Bel sugere.

— Misericórdia! — Seguro uma risada. — Tá, pode ser.

Fora do Metrô e descendo a Augusta, tento imaginar onde estamos indo. Sei que muitos dos nossos colegas da universidade dividem apartamentos por aqui. Inclusive, alguns que acho que odeiam a minha existência no momento.

Veja bem, não é que eu fosse popular, mas Cíntia tinha amigos onde quer que fosse e é meio óbvio que isso traria consequências ao meu status estudantil. Não estou dizendo que eles estariam errados em terem pego antipatia por mim após o término, é mais porque não é nada legal ser odiada por algo que não diz respeito aos outros.

Quanto mais adentramos a rua e atravessamos faixas de pedestres e quarteirões, mais preocupada fico. Se a minha memória não falha, da última vez que estive aqui foi em uma festa na casa de Paola. Ela e minha ex-namorada tem uma amizade meio esquisita, mas estão sempre unidas quando convém.

Faz sentido estarmos indo até lá, já que Elizabete vive dizendo que Heloísa, que mora com a — não tão — amiga de Cíntia, tem uma dívida com ela por conta de uma aposta.

Onde fui amarrar meu burro?

— Talvez eu espere aqui embaixo mesmo, que tal? — sugiro enquanto o interfone não é respondido. Estamos em frente ao prédio de Paola e há uma movimentação considerável, já que há um bar logo à frente.

— Nem pensar que você vai ficar na rua. Vamos lá! — Elizabete segura minha mão para se certificar de que não ficarei para trás.

Cumprimentamos o responsável pela portaria, assinamos o livro de visitas e subimos o elevador. Respiro fundo porque sei que minha ex pode estar nessa festa, com sua nova namorada. Que situação péssima.

Um filme do nosso relacionamento passa na minha cabeça. Sinto meu estômago embrulhar e uma das minhas mãos começa a apertar a dobra do braço oposto. Costumo ser uma pessoa que lida bem com situações difíceis, desde que não envolvam meu emocional. Sinto que posso chorar a qualquer momento.

No silêncio que se instaurou, temo estar sendo observada. De fato estou. Bel e Bete envolvem seus braços nos meus e recostam suas cabeças nos meus ombros. Talvez, elas sejam fadas disfarçadas, porque me tranquilizo.

As portas metálicas se abrem para sairmos. Não demora até alguém abrir a porta. É uma moça do meu curso, que inusitado! Ela sorri para mim e diz para entrarmos.

— Sabe da Heloísa? — Eliza pergunta. Eu e Bela escaneamos o ambiente. A menina que abriu a porta nos instrui a seguí-la.

Tento passar despercebida, mas o que eu temia acontece. Conto ao menos dez pares de olhos me encarando com reprovação. Algumas pessoas colocam a mão na frente da boca para sussurrar. O percurso até o canto em que Heloísa está parece não ter fim. 

A nossa guia, que me recordo do nome agora, Sofia, entra em um quarto e sai acompanhada da devedora antes de desaparecer na festa.

— Ah, oi! — Ela cumprimenta Eliza com um beijinho, Bela com um abraço e não sabe muito bem como agir diante de mim. Então aperta a minha mão. — Por aqui!

Fazemos o percurso de volta e as caras feias se voltam na minha direção mais uma vez. Encostamos na entrada da cozinha enquanto a moradora procura pela garrafa de vodca no ambiente.

Subir até esse apartamento foi de fato um erro, pois logo Paola surge.

— Nossa, vacilona. — Ela se aproxima de mim. — Coragem sua aparecer aqui depois de tudo o que fez, hein! Sorte sua que não gosto de estragar festa, senão falava umas poucas e boas aqui mesmo.

— Desencana, Paola, você nem gosta da Cíntia — Heloísa aponta. Não sei se é porque está de saco cheio do drama ou porque realmente não me vê como a vilã.

— Ah, gosto sim. E foi ridículo o pé na bunda que essa falsiane deu na Cíntia.

Não foi exatamente ridículo. Mas não deixa de ser verdade que fui eu quem terminou essa relação. Certo, pode ser que o lugar em que fiz isso seja o mal nessa história, mas foi meu único lapso de coragem para fazer o que precisava ser feito.

Apesar de estar na fossa agora, tudo começou no dia em que percebi que não sentia mais o mesmo amor por Cíntia. Sabia que meus olhos não brilhavam mais da mesma forma ao falar dela e que quando pensava na sensação de estar apaixonada, apenas um vazio tomava conta.

Sei que é complicado a gente se colocar na posição do que é mais justo para o outro, mas não era apenas sobre ela, era sobre mim também. O nosso relacionamento não funcionaria mais dali em diante e resolvi dar um fim. Dica: não faça isso num canto do restaurante universitário porque é muito expositivo e cada um dos presentes vai interpretar a situação à sua maneira e começar boatos de mal gosto.

— Que seja, não foi com você que ela terminou. — Heloísa chega perto de nós e estende a garrafa para Bete. — Aqui. Bom rolê! — Sorri e sai de cena, levando Paola consigo.

É praticamente um convite para nos retirarmos, que é o que fazemos.

Caminhamos em silêncio até o ponto de táxi mais próximo. O clima ficou meio pesado e não sei se é porque minhas amigas concordam em algum grau com Paola ou se porque não sabem o que dizer para me animar.

Talvez toda a minha onda de felicidade tenha sido parte de uma máscara que criei no momento em que saí porque não queria deixar o rolê tão para baixo. Não sou boa atriz, tentei quando era criança, mas suprimir sentimentos ruins é algo que sei fazer sem muito esforço.

No táxi, minhas amigas conversam com o taxista sobre o 1989, já que uma das faixas toca no rádio. Acho o nome desse álbum engraçado porque é o ano em que nasci. Se ainda estivesse namorando, diria que You Are In Love é a minha música.

Fico pensando que um dia vai ser. Mas não por muito tempo, porque a autossabotagem corrói meus pensamentos e me sinto culpada pelo que fiz com Cíntia. Na maior parte do tempo, evito ir por esse caminho, mas quando meu lado empático resolve se mostrar, não consigo evitar a ideia de que fui super injusta, de que fui egoísta e não deveria ter feito isso com alguém que dizia amar.

Há outro lado meu que aparece nessas situações e relembra que o amor não pode ser cômodo e manter as pessoas em relacionamentos que não funcionam mais, que egoísta seria mantê-la ao meu lado quando o sentimento já não era mais o mesmo.

Descemos do veículo não muito tempo depois. Gastamos uma nota para uma viagem que demorou no máximo dez minutos, mas pelo menos não cansamos os quase vinte e dois que o Google Maps alertou que iríamos caminhar.

— Levanta a cabeça, princesa Aurora — Bela diz. — Shake it off — aconselha, citando a loirinha e me arrancando uma risada.

— É, finge que não tem nada no cérebro e deixe os haters odiarem — Bete complementa.

— Essas referências soam bobas quando faladas assim! — Seguro a barriga ao rir.

— Mas funcionaram, tá vendo?

É mais um momento em que percebo que as duas não se voltariam contra mim nem se eu desse motivos. Noto que muitas coisas são apenas eu vivendo na minha cabeça e que palavras de conforto, mesmo que breves, são o que estão me tirando do lugar em que eu estava. Viver na minha cabeça é algo que me faz mal e que está intrínseco em mim desde pequena.

— Certo, vamos balançar tudo pra fora nessa festa! — Seguro as mãos delas ao caminharmos até o segurança na porta.

Estaria mentindo se dissesse que não me surpreendi com a quantidade de pessoas presentes na festa. A música, controlada por um tal de DJ Antônio Off, ou algo brega assim, ressoava em meio ao som da multidão formada em frente ao palco que cantava junto ao som de Blank Space.

— Não acredito que perdemos Welcome to New York! — Elizabete resmungou.

— Calma, amiga, vamos pra lá antes que acabe também — Bela sugere. Nós nos juntamos ao enorme grupo de pessoas na pista. Antes de mais nada, ela pega a câmera e tira mais uma foto para a conta.

Não penso muito a respeito do que fazer. Apenas solto a voz para me juntar aos demais. Canto como se não houvesse preocupações. Como se a música tivesse sido escrita para um contexto muito específico da minha vida. Simplesmente me entrego porque esse é o poder que as letras dessas canções têm sobre mim. É estranho pensar o quanto uma cantora que nem sabe quem sou consegue entender um aspecto da minha vida que muitas vezes não sei como expressar, por mais que nossas identidades não sejam nada parecidas.

 Quando a faixa quatro começa a tocar, aviso minhas amigas que irei pegar bebidas para nós três e caminho até o bar. Peço a coisa mais básica que encontro porque não quero esquecer essa noite e algo forte com certeza me traria um borrão.

Do outro lado do bar, um par de olhos me encara curioso. Uma garota de cabelos vermelhos e pele preta sorri. Pisca para mim e, deixando um pouco de lado as dores que carregava no início daquela noite, me permito sorrir de volta. Fico intrigada, mas não me movo e ela também não. Pelo visto será um jogo longo que pode durar a noite toda.

Talvez eu deva dar uma chance para essa brincadeira e ver o que acontece. Eu devo seguir em frente também. Afastar todos os pensamentos sobre minha antiga relação e lembrar que ainda estou aqui para viver, sozinha ou com outra pessoa.

— Ei, vem logo! — Elizabete surge à minha esquerda, junto com Bela.

— Ah, claro, vamos. Não podemos perder All You Had to Do! — digo, sem jeito, e tenho certeza que elas sacam o que aconteceu, porque começam a rir.

— Tá vendo como sair de casa te fez bem!

— Opa, a noite acabou de começar.

— Iiiih! — Bela brinca e retornamos para a pista com nossas bebidas.

Dançamos e cantamos bastante. Entre fotos, risadas e flertes com estranhos que vibram na mesma frequência que nós três, sinto que estou vivendo uma das noites mais memoráveis da minha vida. É incrível o que estar cercado de pessoas que gostam da mesma artista, banda ou que quer seja que você curta pode fazer com o seu ânimo.

Mais incrível é poder compartilhar todos os sentimentos com amigas que você ama. É algo que não percebo com frequência, pois estou sempre com a mente em outros lugares. Mas eu amo essas meninas.

Cada música me faz lembrar de uma cena diferente de outubro e setembro passados. Elas funcionam como uma máquina do tempo. A cada cena revisitada na minha imaginação, o peso se esvai do meu peito, como se Cíntia fosse apenas uma coleção de lembranças boas, um relacionamento que me ensinou muito e nada mais. A culpa se desfaz ao final de Clean. Sou preenchida pela sensação de que as letras da loirinha são hinos escritos para pessoas que estão passando por uma turbulência na vida.

Quando You Are In Love começa a tocar, um sentimento me atinge com tudo. À minha frente, quadros tomam vida e consigo visualizar minhas personagens se encontrando nessa mesma festa em que estamos. Elas estão rindo e aproveitando cada momento. Uma percebendo que está apaixonada pela outra a cada gesto. Sei como a história continua e me sinto ainda mais contente de ter topado essa pequena aventura.

Talvez a chave para tudo seja uma canção da Taylor Swift, boas amizades e uma noite de festa com uma galera animada e livre. A percepção de que é possível seguir em frente sem sentir que fez mal ao mundo. Que é possível construir castelos com todas as pedras que aqueles que julgam jogam em você.

Então, noto que “talvez” foi a palavra que me acompanhou durante essa noite. Percebo que vivo no reino das possibilidades, dos achismos, e, sendo sincera, isso não me incomoda. Tenho vinte e cinco anos, não preciso ter certeza sobre nada na vida. Não precisei aos quinze e não vou precisar quando tiver sessenta e cinco. Porque a vida sempre será um grande talvez.

E se vamos ser as novas românticas, como a música que estamos berrando diz, então temos mesmo que estar abertas às possibilidades e surpresas da vida, na esperança de que todo o sonho seja assim, como um sonho.

Agora que essa história não está mais na Amazon. Ela precisa de um novo lar temporárioa. E por que não aqui na newsletter?

Aos curiosos, Aurora é citada no conto de Natal como uma autora famosa. Isso porque anos depois de 2015, ela realizou um dos seus sonhos. Quem sabe a gente não descubra mais sobre ela por aqui?

Até a próxima newsletter