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Tudo, menos um livro novo - Microcontos do Ninoverso #2
Encontrei meu eu mais novo para um café
Encontrei meu eu mais novo para um café.
Ele chegou uma hora mais cedo.
Eu, sabendo que esse seria o caso, fiz o mesmo.
Não sei porque criei essa necessidade de sempre chegar antes. Todo mundo se atrasa. Uns minutinhos. Uns minutos, às vezes mais do que isso.
Mas não me deixaria esperar tanto assim. Sei que isso é o medo de perder o ônibus certo e acabar chegando tarde demais.
Ele vestia as camisetas que ganhou.
Elas nunca expressaram bem como ele se via e sentia. Eram elas ou eram elas.
Eu cheguei com um estilo bem diferente. Com as roupas que comprei e me fazem sentir bem.
Ele tentou disfarçar, mas eu vi o sorriso discreto.
Aquele que damos sempre que ficamos contentes quando alguém de quem gostamos consegue o que quer ou quando uma cena na rua nos faz brilhar os olhos.
Me adiantei e avisei que era por minha conta.
Pra me agradar, ele não disse nada. Embora, no fundo, tenha ficado aliviado.
Dinheiro nos causa ansiedade em níveis absurdos. Mas eu me planejei.
Ele pediu um suco de maracujá. Eu também.
Ele pediu torta de limão. E eu também.
Algumas coisas não mudam. Especialmente quando estamos na nossa própria companhia.
Fiquei me perguntando se essa era a mesma versão de mim ou se esse eu vivia outra vida apesar das aparências.
Nunca dá pra dizer. Depois desses encontros sempre esquecemos.
Ele me perguntou se meus livros favoritos eram os mesmos.
Disse que não. Expliquei que nosso acesso à literatura mudou. Mas que ele podia relaxar, porque eu ainda gostava de ler as mesmas coisas. E ele ia amar descobrir as histórias que descobri.
Ele me perguntou o que eu fazia. Se estudei o que decidimos estudar.
Contei muito feliz que sim. Mas que a profissão não era como na TV e que as oportunidades surgiram em lugares meio inesperados.
Ele comentou brincando que as respostas eram meio vagas.
Expliquei que era melhor assim. Falar demais só causaria uma sensação de querer mudar coisas que já estavam definidas.
“Paradoxo”, nós dissemos juntos, como bons fãs de séries com viagem no tempo.
Falamos dos nossos gostos, desgostos, afetos e desafetos.
Ele contava sobre o presente, que eu só conseguia enxergar como o passado.
E ficamos nostálgicos lembrando do passado dele.
Foi curioso ouvir sobre as minhas memórias do ponto de vista de alguém que as tinha como uma coisa mais recente.
Não tínhamos nenhum outro compromisso
Ficamos falando e falando, lembrando e lembrando.
E enquanto falávamos, deu para sentir, ouvir e até mesmo enxergar a hesitação dele.
A vontade de pedir ajuda e o medo de perguntar o que eu tinha feito em relação àquilo que me destruía todos os dias.
Tudo o que ele queria desse encontro era sair com a esperança de que dias melhores viriam.
Mas como você pode prometer para si uma coisa que nunca alcançou?
Qual é a finalidade de revelar que mudanças demoram muito mais quando se vive nas configurações que vivemos?
Há tanto que um olhar pode segurar. E acho que, assim como eu enxerguei nos olhos dele um sentimento que quase ninguém enxerga, ele também encontrou alguma resposta nos meus.
Não acho que tenha sido justo entregar a resposta assim para ele.
Mas seguimos sorrindo. Sempre seguimos sorrindo.
Ele checou as horas no celular. Eu também.
Era hora de ir.
Para não perder o ônibus.
Para não nos perdermos também.
Esperei que ele fosse antes. Seria mais fácil assim. O endereço não era o mesmo ainda.
Enquanto o assistia fiquei pensando: acho que ele vai se encontrar de novo.
O ciclo se repete.
A dor sempre será a mesma.
Mas torci que quando ele, mais velho, encontrasse ele, mais novo, tentasse uma abordagem nova.
Sugerisse uma mudança. Contasse alguns detalhes que acendessem a faísca para fazer diferente.
Torci para que o tempo não fosse fixo. Que paradoxos fossem só uma bobagem.
Mas talvez eu já tenha estado ali com o meu eu mais velho.
Pode ser que tenhamos nos esquecido e que não importa o que tínhamos para dizer. Nada mudou para ele.
Então mudar cabe a mim.
E mesmo não tendo me salvado antes,
ainda há tempo para me salvar agora.
A história dessa semana é um pouquinho diferente do usual, porque essa trend me deixou pensando por semanas como seria me reencontrar, mas só consegui fazer sentido dela quando ela não era exatamente sobre mim.
Espero que gostem!
Até a próxima newsletter